Versos 163-170

  ]"Um, porém,
O armênio Zálates, mais frouxo dos efebos
Diz-se que se entregou pra um ardente tribuno."
Olha o comércio das Nações: veio em custódia,
Virou homem aqui. Pois se em Roma mais tempo
Aos meninos se der, não faltarão amantes.
Deixem as calças, facas, freios e flagelos:
Voltam a Artáxata com hábitos togados.

     ]"et tamen unus
Armenius Zalaces cunctis narratur ephebis
mollior ardenti sese indulsisse tribuno." 165
aspice quid faciant commercia: uenerat obses,
hic fiunt homines. nam si mora longior urbem
indulsit pueris, non umquam derit amator.
mittentur bracae, cultelli, frena, flagellum:
sic praetextatos referunt Artaxata mores. 
 

Um último esforço de amor-próprio será empreendido por um desses hipócritas romanos: apontar que, mesmo concedendo a existência de tantos vícios de Roma, pode-se encontrar costumes piores entre os estrangeiros. Esse seria o caso de Zálates, armênio de costumes efeminados, de quem circulava que se entregou a um tribuno.

Noto que há uma ambiguidade na frase que tentemos manter com o verbo entregar. O armênio se entregar (indulsisse) pode significar ao mesmo a submissão bélica e a sexual e o tribuno ardente é igualmente aquele fogoso no campo de batalha e na cama - embora seja óbvio que aqui se trate só da concessão sexual. O verso de Juvenal sobrepõe perfeitamente a noção tão romana de que o ativismo sexual do cidadão é uma projeção privada do ativismo político e militar que dele se espera na esfera pública.

Pois bem, a exceção apresentada apenas confirma a invectiva de Juvenal: Zálates é sim estrangeiro, mas um muito especial. Sendo provavelmente parte da elite armênia (lembremos que a Armênia é, no período, um estado semi-independente tutelado na prática por Roma), era parte da leva de crianças mandada à urbs como reféns, para a garantia da aliança e com a promessa de civilização.

A apresentação é repleta de termos ambíguos: comércio (commercium), por exemplo, em latim comporta o sentido das relações mercantis e diplomáticas, mas também das relações ilícitas, de corpo. Tal uso do termo é tão antigo quanto Plauto e atestado contemporaneamente em uma famosa passagem de Suetônio (Cal. 36). Entre romanos e armênios fica difícil distinguir o que são acordos e o que violação.

O resultado do acordo entre nações é claro: quanto mais tempo essas crianças ficam expostas a Roma, mais efebos como Zálates estarão disponíveis para a volúpia dessa elite hipócrita.

O fechamento é categórico: na ordem romana, os povos submetidos abandonam os indícios de sua cultura: calças, facas, freios, flagelos são itens que, juntos, representam a equitação, atividade masculina e bélica. Deixados de parte, podem ser substituídos pela toga pretexta - que é a vestimenta reservada aos grandes magistrados, mas também aos jovens antes de chegar à fase adulta, justamente a fase em que estavam sujeitos à violência sexual.

Artáxata, enfim, o leitor já deduz, é a capital da Armênia.

É relevante apontar em relação ao encerramento do poema que, embora os últimos versos sejam luminosos e contundentes, não há uma conclusão, do ponto de vista argumentativo. A indignação cessa junto com a matéria, não há uma conclusão moralizante, uma proposta ou tentativa de correção. O escopo do poema satírico não é edificante: os vícios são apontados, a cidade é devastada na busca pelos viciosos, morde-se aqui e ali, mas a reforma do mundo não é operada. O próprio comportamento esperado, um leitor contemporâneo pode perceber facilmente, é implícito, e a falta um projeto pode muito bem indicar a descrença na possibilidade de uma reforma da cidade. De mais a mais, a sátira, sendo espaço da indignação, emula as explosões de afeto espontâneas, o discurso improvisado.

A solução, de fato, o poeta já tinha sugerido no primeiro verso: fujam para as montanhas!

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