Versos 1-13
Esse trecho figura em muitas discussões teóricas sobre o gênero satírico, dado que é tido como uma das principais exposições metalinguísticas do programa poético de Juvenal.
O alvo da sátira são os hipócritas, que aqui são agudamente descritos.
Vv. 1-3
Mais além da Sarmácia e do Mar Glacial
Quero fugir se coisas moralistas ousa
Quem simula ser Cúrio e vive em bacanais.
Vltra Sauromatas fugere hinc libet et glacialem
Oceanum, quotiens aliquid de moribus audent
qui Curios simulant et Bacchanalia uiuunt.
O traço da indignação da persona satírica é apresentado no verso 1, antes mesmo de que se conheça o objeto desse afeto: é melhor fugir para os piores buracos que os romanos conhecem a tolerar os hipócritas. A conformação geográfica é um bom ponto de partida para a proposição da sátira, como se pode ver, em Juvenal, também na sátira 10. Deve-se explicar que por Oceanus (que traduzimos como mar, por economia), os romanos nomeavam a extensão de água que havia ao redor das terras conhecidas. Assim, Mar Glacial designa as águas que, ao norte, contornavam os limites do mundo conhecido dos romanos. Sarmácia (Juvenal nomeia mais especificamente o povo, sauromatas, os sármatas) é o nome genérico da região que abrigava esse povo no tempo dos romanos, numa extensão que vai desde os confins da Germânia até o Mar Negro e a bacia do rio Volga, na Rússia, embora mais caracteristicamente indique a região da moderna Ucrânia e da Romênia, mais próxima das fronteiras do Império Romano.
Aqui importa confrontar nosso texto com a famosa tradução oitocentista de Martins Bastos, que alterna uma ou outra genial ousadia com um sem fim de escolhas que julgamos inoportunas.
Além fujamos da Polônia e os mares
Glaciais se transponham quando ouvimos
Em costumes falar, nefandos monstros,
Cúrios fingidos que entre orgias vivem!
Merece genuíno aplauso o verso 4, de belo ritmo e sonoridade, além da escolha de orgias para traduzir Bacchanalia, léxico saboroso, amplamente usado em nosso cancioneiro, ainda que não-especializado, razão pela qual, com dor no coração, não o acolhemos.
O elogio cessa por aí. Traduzir Sarmácia por Polônia, se não está totalmente equivocado (de fato alguns teóricos afirmam que havia sármatas nessa região), também não é muito feliz, quer pelo anacrônico do termo, quer pela improbabilidade de os romanos terem andado por essas bandas.
O pior de tudo, porém, é o ouvimos. Aparentemente, é uma tentativa de traduzir audent, resolvendo a passagem. No entanto, ouvimos em latim é audimus; audent quer dizer ousam. Na passagem, os hipócritas (sujeito da frase, apresentado no verso seguinte) ousam alguma coisa (aliquid) sobre os costumes (de moribus). É importante notar que os crimes dos falsos-moralistas apresentados em seguida são de atos, não de fala. E, enfim, nefandos monstros é algo inteiramente imaginado por Bastos, sem qualquer equivalência em latim.
Cúrio Dentato foi um político e militar de grande sucesso na primeira metade do século III a. C., proverbialmente reconhecido como modelo moral de incorruptibilidade, fama que lhe advém da recusa em celebrar um triunfo por uma brilhante vitória sua.
Vv. 4-7
São incultos, embora em toda a casa tenham
Crisipo em gesso. É o mais perfeito deles quem
Compra Aristóteles ou Pítaco igualzinho
E guarda a estante com Cleantes legítimo.
indocti primum, quamquam plena omnia gypso
Chrysippi inuenias; nam perfectissimus horum, 5
si quis Aristotelen similem uel Pittacon emit
et iubet archet pluteum seruare Cleanthas.
Aqui se faz o retrato desses hipócritas, fazendo-se referência, justamente, a retratos. Não chega a ser necessário anotar nome a nome os filósofos referidos. Basta saber que são filósofos, e que não há outro critério evidente que os relacione, pois o que está em jogo é justamente a falta de critérios. Querem se passar por filósofos quando sequer são capazes de entender a filosofia que esses autores produzem. Por esse motivo, se apegam ao aspecto externo e acidental da filosofia, seu culto sectário da imagem e seu adesismo, e ornam a casa com bustos de sábios.
Parece-me relevante apontar, nesse ponto, como o ataque se dirige a uma classe pretensamente provida de meios: para cultivar uma aparência, é necessário o dinheiro que adquire os bustos (mesmo os de gesso, mais frugais), as estantes e, implícito fica, os livros. A sutileza de Juvenal é contundente: ao não citar os livros nas estantes, mostra que nem ao dono da casa, nem aos convidados, importa saber quais são os textos disponíveis na coleção do falso intelectual, já que o efeito de erudição já será alcançado pela presença dos retratos. É um procedimento universal, que pode ser equiparado a outros do presente, bem como os propósitos. Mas, adverte o poeta...
Vv. 8-10
Pela cara não vá. Que viela não se enche
De soturnos devassos? Criticas, mas és
Buraco conhecido entre as bichas socráticas.
frontis nulla fides; quis enim non uicus abundat
tristibus obscenis? castigas turpia, cum sis
inter Socraticos notissima fossa cinaedos? 10
Aqui, o contraste é magnífico entre a domus, grandiosa e porta-voz dos valores oficiais, e a viela, para a qual se dirigiam os profissionais e os amadores daquilo que não se pode confessar.
Ainda é sobre rostos que se explora o ataque: enquanto o busto do filósofo busca transmitir os afetos superiores de sua filosofia, os que se dirigem às vielas são tristes. O termo em latim tem um campo semântico mais amplo que seu sucessor vernáculo, abrangendo, além da infelicidade, noções como a de aspereza ou seriedade. Quem se dirige ao baixo mundo romano não vai triste, supomos, já que busca satisfação de desejos, mas vai com a cara séria, apreensiva, de quem tenta não ser visto.
Aqui a face real dos falsos Cúrios se evidencia: embora seu discurso seja moralista, sua prática é imoral. Importa apontar aos não familiarizados com a sexualidade romana que o lugar do homossexual passivo é um dos mais desprestigiados, alvo de desprezo justamente por representar a abdicação do caráter ativo que se espera do cidadão romano no privado como extensão do público. E não só nosso invectivado é passivo, como ele é apenas fossa, isso é, o buraco. O círculo do interesse pela filosofia se fecha nesse ponto: os falsos Cúrios se juntam às seitas e afetam seus discursos, quando o que procuram é relações entre homens que já naquele tempo eram associadas ao nome de Sócrates.
Vv. 11-13
Membros peludos, cerdas duras sobre os braços
Mostram gênio durão, mas no cu bem lisinho
Um médico que ri corta a hemorroida inchada.
hispida membra quidem et durae per bracchia saetae
promittunt atrocem animum, sed podice leui
caeduntur tumidae medico ridente mariscae.
Em mais uma alternância entre os aspectos públicos e privados dos hipócritas, a última e mais contundente, contrapõe-se a virilidade dos membros visíveis, ásperos em seus pelos (que Juvenal chega a chamar de saetae, termo que nomeia os ouriços aspetos dos animais, e eu não hesitei em usar cerdas), ao efeminado do corpo oculto, que é a lisura do ânus, que adquire esse aspecto atraves da pratica passiva do sexo anal.
O retrato dos indivíduos invectivados poderia acabar no verso 12; Juvenal, no entanto, introduz um novo elemento no texto. Trata-se de um médico que opera as hemorroidas do falso moralista. Essa introdução, que a princípio poderia parecer pouco econômica, é central para o texto, pois tem sido tratada como uma alegoria metalinguística: o médico é o poeta satírico; a sátira é a operação e a hemorroida, condição que a antiguidade também associava ao sexo anal, é o vício. O objetivo da sátira é extirpar o vício do corpo civil. E como o médico-poeta faz isso? rindo. O riso é, portanto, o afeto provocado pelo discurso satírico. Ele aproxima a sátira da comédia, que também causa esse efeito em seu receptor, mas se contrapõe a ela ao ser excludente, no que aquela é inclusiva. Recomendamos a leitura das partes correspondentes aos caracteres baixos na Poética de Aristóteles. De lá recupero a noção do riso anódino - que não dói - do gênero cômico. A sátira é o contrário: quando ri, dói. Ela não serve para integrar todo mundo num final feliz, mas para expulsar aquilo que, incorrigível, é danoso.
Muito interessante!
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