Versos 93-103
Um seus cílios, tingidos com fuligem úmida,
Conduz na agulha curva e, levantando-os, pinta
O olho que treme; um bebe em priapo de vidro
E enche uma touca de ouro co' o enorme cabelo,
Vestido em um xadrez azul, verde raspado:
Seu servo jura pela Juno do patrão.
Um segura o espelho, fardo do bicha Otão,
Do ator de Aurunca espólio, no qual se admirava
Armado, quando erguer mandava os estandartes.
Grave-se a ação nos novos anais e em histórias
Recentes, um espelho na guerra civil.
ille supercilium madida fuligine tinctum
obliqua producit acu pingitque trementis
attollens oculos; uitreo bibit ille priapo 95
reticulumque comis auratum ingentibus implet
caerulea indutus scutulata aut galbina rasa
et per Iunonem domini iurante ministro;
ille tenet speculum, pathici gestamen Othonis,
Actoris Aurunci spolium, quo se ille uidebat 100
armatum, cum iam tolli uexilla iuberet.
Res memoranda nouis annalibus et recenti
historia, speculum ciuilis sarcina belli.
O trecho em questão continua a descrição dos rituais da Bona Dea cultivada por homens. Aqui se descrevem aqueles que acompanharão Crético durante o culto. São três indivíduos, nos quais se carrega as tintas da feminilidade: no primeiro, descreve-se o processo de maquiagem. Olhos pintados, cílios frisados, sombra escura, feita com fuligem. No segundo, o foco é nos cabelos, grandes e presos em uma rede, bem como nas roupas de cores efeminadas (ambas as cores são usadas com a mesma intenção em Marcial, I, 96). Detalhe todo especial se observa em seu copo, que tinha forma de priapo, isto é, daquele membro de proporções desmedidas que caracterizava esse deus. Fazer alimentos e utensílios com formato fálico parece ser uma prática da antiguidade romana: Marcial cita um pão em forma de priapo. A feminilidade desta personagem é tal que seu servo não jura pelo pai dos deuses em sua proteção, mas pela mãe.
O aparato que distingue o efeminamento do terceiro personagem é um espelho. Deste objeto se faz uma ponte para outra personagem que não tem a ver com o culto adaptado, mas que se equipara em feminilidade. Trata-se do imperador Otão, ou Óton, em grafia alternativa, um dos quatro que, em 69 d.C., pleiteiaram o poder de Roma após a morte de Nero. A tomar a anedota por real, este, na função de general, se olhava no espelho todo paramemtado, antes de começar os combates.
A ironia dos versos 102-103 deixam clara a inadequação do comportamento. Rememora-se na história o feito notável, e o espelho de Otão não deixa de ser digno de nota, mas por sua torpeza. Deve-se acrescentar aqui uma nota à escolha dos termos técnicos da historiografia, especialmente a annalibus e historia. De uma parte, são modalidades do discurso histórico antigo; de outra, são os nomes das principais obras de Tácito, o historiador mais importante da época de Juvenal e ainda hoje uma das fontes mais importantes sobre esse período. O caráter efeminado de Otão, por exemplo, é corroborado por Hist. I, 22.
Devo mencionar que é extremamente provável que a obra conhecida por "Annales" de Tácito não tinha esse nome (Cf. a edição de Goodyear)... O título "Annales" não é nem conhecido na antiguidade (Jeônimo a menciona como "uitas Caesarum" ambos os livros), nem tem autoridade manuscrita ("Ab Excessu divi Aug[ustii]" é o nome que aparece no principal, único, manuscrito dos Annales, o primeiro Mediceu). Então é parece um tanto fantasioso dizer que "annalibus" se refere ao nome de uma obra de Tácito...
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