Versos 132-142

'Amanhã
Vou cedo a cerimônia, ao vale de Quirino.'
'O que celebram?' 'O quê? Põe véu meu amigo,
Muitos não convidou.' Se eu vivo mais, farão,
Farão às claras, pedirão que conste em ata.
Nesse ínterim, tormento enorme aflige as noivas
Pois não podem parir e assim prender marido.
O bom é que nenhum poder da alma no corpo
Concede a natureza e estéreis também morrem.
Não serve Lide inchada co' a caixa de unguento
Nem serve dar as mãos a luperco ligeiro.

]‘Officium cras
primo sole mihi peragendum in valle Quirini.’
‘quae causa officii?’ ‘quid quaeris? nubit amicus
nec multos adhibet.’ liceat modo vivere, fient, 135
fient ista palam, cupient et in acta referri,
interea tormentum ingens nubentibus haeret
quod nequeant parere et partu retinere maritos,
sed melius, quod nil animis in corpora iuris
natura indulget: steriles moriuntur, et illis. 140
turgida non prodest condita pyxide Lyde,
nec prodest agili palmas praebere luperco.

Nessa parte, Juvenal faz um vaticínio. A disposição do texto pode confundir o leitor: primeiro ele nos mostra um diálogo hipotético, em que um dos falantes conta de uma cerimônia pequena à qual irá, aos pés do Quirinal, em que um amigo se casará de noiva (sabe-se que o amigo está se transvestindo pois o verbo nubit, em latim, é exclusivo das mulheres; homens, casando, diriam uxorem duco). Só depois vem o vaticínio: se nós vivermos um pouco mais, ouviremos abertamente esse tipo de fala, e ainda mais, o encorajamento de que estes noivos começassem a desejar o registro legal dessas bodas.

O vaticínio de Juvenal, cujo equívoco poderia ser apontado pelos que ainda estamos lutando por criar ou assegurar esses direitos dois milênios depois, levanta a questão do tipo de olhar que devemos impor a essa cena: devemos supor uma invectiva real a um comportamento que o poeta percebe como nascente e em ascensão, ou entender a imagem como uma estética do absurdo, em que o poeta carrega as tintas em seu quadro, e faz uso de uma hipérbole para amplificar a percepção do vício atacado no poema?

Minha sugestão é a interpretação no meio do caminho: o grotesco é um procedimento favorito no gênero satírico, e uma invectiva que atinge igualmente a hipocrisia e o efeminamento de indivíduos se beneficiaria da visão de um sacerdote de Marte que troca o escudo por um véu de noiva. Mas ao mesmo tempo, não se deve excluir que uma ampla revisão (ou mesmo crise, é termo que não me agrada, mas que já foi usado para tratar desse período) de valores estivesse em andamento, e igualmente estivessem sendo contestados a sexualidade tradicional, por um lado, e a tolerância aos vícios alheios, pelo outro. O poema é pouco tempo anterior ao imperador Adriano, que ao largar Roma para viver com o jovem Antínoo, rejeita igualmente a moral que o impediria de viver esse amor abertamente e a forma como a cidade vive.

O quadro de um futuro em que essas uniões sejam possíveis traz uma nova preocupação às noivas: a estabilidade do casamento, que o poeta com ironia atribui aos filhos, está vedada a elas.

Os versos seguintes exploram essa questão. Muito ironicamente, inverte-se a máxima platônica de que a mente rege o corpo, já que a natureza impede que o desejo de ter filhos seja satisfeito por essas noivas. Métodos tradicionalmente utilizados por mulheres medo terão serventia, tais como as curandeiras com suas caixas de medicamentos ou a Luperco.

Esse deus, manifestação de Fauno enquanto protetor dos lobos, estava associado a um rito de fertilidade antiquíssimo, relatado por Ovídio no livro 2 dos Fastos. O escoliasta antigo de Juvenal entende que dar as mãos ao Luperco fosse parte de um ritual em que as mãos fossem dadas para a flagelação, como no exemplo ovidiano, ou que as mãos fossem dadas como parte de uma procissão.

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