Versos 121-132
Próceres, precisamos de censor ou de áugure?
Acaso causa horror, será maior prodígio
Mulher parir bezerro ou a vaca um cordeiro?
Veste um longo vestido, babados e véus
Quem levou sacros bens pendendo em loro arcano
E suou sob o escudo ancil. Ó, pai da urbe,
De onde vem pena assim aos pastores latinos,
De onde, Gradivo, urtiga tal toca teus netos?
Varão ilustre em grana e origem dá-se a outro
E não agitas o elmo e ao sólio a lança bates
Nem reclamas ao padre? Então vai, cede espaço
Do campo sério que descuidas. ["Amanhã
o proceres, censore opus est an haruspice nobis?
scilicet horreres maioraque monstra putares,
si mulier uitulum uel si bos ederet agnum?
segmenta et longos habitus et flammea sumit
arcano qui sacra ferens nutantia loro 125
sudauit clipeis ancilibus. o pater urbis,
unde nefas tantum Latiis pastoribus? unde
haec tetigit, Gradiue, tuos urtica nepotes?
traditur ecce uiro clarus genere atque opibus uir,
nec galeam quassas nec terram cuspide pulsas 130
nec quereris patri. uade ergo et cede seueri
iugeribus campi, quem neglegis. [officium cras
Descrita a cena do casamento de Graco, passa o poeta à argumentação. Vem primeiro a pergunta retórica. Diante de tal cena, o que pensa a elite romana (os próceres, termo mais sofisticado em português do que em latim, mas que me agradou manter pela solenidade que transmite): é necessário um censor, o oficial romano que zelava pela moral, ou um arúspice, sacerdote que lê o futuro; (por razões métricas, troquei o termo por áugure, pois são intercambiáveis)? Em tal circunstância, chamar o censor para reinstaurar a ordem, ou o sacerdote para prever as punições do céu?
Além disso, contudo, considero que estamos aqui diante de outra passagem metalinguística: censurar ou adivinhar são duas atividades que dizem respeito ao próprio poeta satírico. E não digo apenas como projeto poético, dado que efetivamente censor e vate são atributos dos poetas, mas porque nos versos que se seguirão Juvenal vai fazer tanto censura quanto vaticínio.
Nos versos 122-123, começa-se invocando o caráter monstruoso (a palavra monstrum, em latim, incorpora tanto a coisa inacreditável, prodigiosa, quanto, por extensão de sentido, a monstruosa): o casamento de Graco é como uma mulher que parisse um bicho, ou um animal que parisse outro de espécie diferente. Esses eram os típicos indícios observados antes das grandes catástrofes, tais como podemos ver descritos, por exemplo, nas Vidas dos doze césares, onde a morte dos imperadores era antecipada por fenômenos semelhantes.
Na sequência, descobrimos mais sobre Graco, dados que são colocados para agravar a censura: aquele que se fez de noiva já havia sido portador do escudo ancil nas procissões, isso é: era um dos sálios, sacerdotes de um dos mais antigos cultos do deus Marte, que de mais a mais era uma função reservada à aristocracia.
Confirma-se, portanto, o caráter aristocrático de Graco, bem como a circunscrição à elite do problema moral de ser sexualmente ativo.
Ao descobrir a posição de Graco, Juvenal se volta ao próprio deus (Gradivo, o que avança, é um dos epítetos de Marte), indagando como a cidade chegou a esse ponto e porque ele não faz nada a respeito.
Note-se que até esse ponto o vício de Graco foi descrito três vezes: em 117-120, em 124 e em 129. Juvenal repete e espalha a descrição e varia as cores para amplificar sua invectiva, apontando como três crimes diferentes um só ato.
Por fim, tenho especial interesse pelos versos 129-130, que descrevem as atitudes esperadas de Marte diante de uma situação revoltante. Parece-nos que é a mesma forma como Camões apresenta o deus no concílio dos deuses, no canto I dos Lusíadas (estrofe 37): o deus mexe no elmo, bate a lança e se dirige a Júpiter. Veja-se o português:
A viseira do elmo de diamante
Alevantando um pouco, mui seguro,
Por dar seu parecer, se pôs diante
De Júpiter, armado, forte e duro:
E dando uma pancada penetrante,
Co o conto do bastão no sólio puro,
O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
Um pouco a luz perdeu, como enfiado.
A investigação camoniana é muito sensível ao modo de organizar o texto dos seus modelos, inclusive nos detalhes, como já em outros textos apontamos sobre os usos de Marcial ou de Ovídio em lugares específicos do épico lusitano. Assim, defendemos que Camões muito provavelmente tinha essa passagem em vista quando organizava o seu épico.
Em virtude disso, tentamos ecoar os Lusíadas no vocabulario da tradução, usando elmo, sólio e padre, em lugar de vocabulário mais sincrônico.
Até aqui, viu-se a censura de Juvenal. A próxima passagem terá o vaticínio.
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