Versos 72-81

Lá é roupa na qual levar leis e direitos
Pro povo vencedor com sangue ainda exposto
E a plebe da montanha quando pousa o arado?
O que não vais dizer vendo o juiz vestido
Assim? Convém à testemunha usar multícia?
Agudo mestre, indômito, da liberdade,
Crético, transpareces. Tal mácula passa
E fará mais, tal qual rebanho inteiro em pasto
Pega em conjunto a sarna ou a impigem dos porcos
E o míldio passa de uva a uva só de olhar.

en habitum quo te leges ac iura ferentem
uulneribus crudis populus modo uictor et illud
montanum positis audiret uulgus aratris.
quid non proclames, in corpore iudicis ista 75
si uideas? quaero an deceant multicia testem.
acer et indomitus libertatisque magister,
Cretice, perluces. dedit hanc contagio labem
et dabit in plures, sicut grex totus in agris
unius scabie cadit et porrigine porci 80
uuaque conspecta liuorem ducit ab uua.

Na passagem, que ainda comenta a roupa de Crético, Juvenal explora os contornos da falta de decoro que ela representa: a nudez que ela expõe.

Os primeiros contornos são éticos: uma audiência formada por aqueles tipos idealizados no mos maiorum, isso é, os soldados recém chegados da guerra (o cidadão romano tipicamente está sempre voltando de alguma guerra) e os valorosos campesinos das montanhas (que, portanto, são mais bravos por trabalharem em terreno mais ingrato), como se sentirão diante de um paladino da justiça assim vestido?

Indissociável dessa discussão é a leitura do problema retórico evidenciado pelo verbo deceant, que é termo técnico das letras tanto quanto da ética: o que é apropriado na produção do discurso é resultante de reflexões sobre verossimilhança e sobre o efeito. Assim, que efeito causaria, indaga Juvenal, uma sentença proferida por um juiz na mesma veste? Que credibilidade se atribuiria à testemunha vestida nessa roupa?

Nessa passagem, adotei um expediente tradutório pouco recomendável, mas que julguei oportuno na organização do poema: o termo multicia foi apresentado primeiro de forma parafrástica (véu transparente), e agora numa tradução direta, ou mais propriamente numa atualização do termo latino (multícia). Com tal expediente, permitimos que o texto tenha certa fluidez no início da passagem, para que o leitor não perca o fio da meada, mas consulte as notas e junte os signos agora, no fim da passagem.

Juvenal passa agora a um símile, comparando o efeito desse comportamento no forum ao contágio das doenças no gado e na agricultura. Aqui, optamos por uma solução anacrônica, interpretar o livorem, mancha esbranquiçada, como míldio, doença fúngica que provoca manchas esmaecidas nas folhas das parreiras. Não dispomos de literatura que associe esse termo a essa praga, mas sabemos que essa é a praga mais comum em uvas, com sintomas semelhantes ao descrito. Ao mesmo tempo, a escolha busca evidenciar a doença, algo que palavras como mancha, brancura, ou semelhantes não conseguiriam.

Comentários

  1. Há uma série de coisas a se dizer a respeito de "livorem". Tens a interpretação renascentista da passagem, que é a mesma do Lewis & Short, de que "livor" se refere a uma fissura ou marca de contaminação em fruta, que aponta essa passagem junto com Tib. 1, 6, 13.

    Como deves saber, o paralelo é falso e o sentido é na melhor das hipóteses questionável. Em Tíbulo (loc. cit.) "livor" é a marca escura dos dentes e beijos no corpo da mulher, e não relacionado à "sucos erbasque" como pretende o dicionário. Quando usado para descrever frutas, "livor" sempre significa "madura", já que a fruta escurece ao amadurecer, seja em prosa (Columela, XII, 49 3), seja em verso (Propércio, IV, 2 13). A interpretação da antiguidade (do escoliasta) é de que "livor" significa inveja aqui, baseado no provérbio grego...

    Mas vamos assumir que "livorem" aqui pode significar um patógeno (o paralelo com as Geórgicas favorece isso, e ao menos um crítico moderno ainda lê o texto desse modo), já que mesmo sem atestação referindo-se a vegetais, ainda é algo possível por ser usado em relação a sintomas de doenças humanas e de animais. Se "livorem" é uma doença, ela é uma que afeta a própria fruta e uma que ou causa fissura ou causa enegrecimento da uva (Cornelius Celsus, usa "livor" com ambos os sentidos, e distingue necessariamente de "palor"). Míldio simplesmente não é uma praga "com sintomas semelhantes ao descrito", pois não afeta as frutas (apenas as partes verdes da videira), nem provoca fissura ou manchas negras nas partes afetadas. Eu pessoalmente acho duvidoso interpretar a passagem como uma praga em si, mas se insistes nessa interpretação e na escolha de uma doença específica para a tradução, Oídio (causada pela "Uncinula necator") é uma que cabe na descrição, se o anacronismo não incomodar. Desnecessário dizer que nenhuma das duas doenças é exatamente correta, já que há evidências que ambas não existiam na Europa na antiguidade. Um fungo que sabemos que existia na Itália no período e afeta as uvas dando coloração escura é a Botrytis cinerea, e que segundo a wikipédia é chamada "podridão cinzenta" (mas eu nunca ouvi esse termo), porém não acho que dá para por isso em verso...

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