Versos 41-50
[Mas aonde]
Foi comprado o perfume que exala do peito
Peludo? Mostra sem pudor o dono da loja
Pois se as leis e direitos se fraudam, o acusem
Face a todos na lei Escantínia; investiga
E observa os homens: muito é o que fazem, porém
Os guarda o número e a falange com escudo,
Entre os frouxos há grande acordo e não existe
Exemplo algum em nosso sexo detestável.
Média não lambe Clúvia, nem Flora a Catula:
Jovens cavalgam Hipo e os dois males descoram.
haec emis, hirsuto spirant opobalsama collo
quae tibi? ne pudeat dominum monstrare tabernae,
quod si vexantur leges ac iura, citari
ante omnes debet Scantinia: respice primum
et scrutare viros; faciunt nam plura, sed illos
defendit numerus iunctaeque umbone phalanges,
magna inter molles concordia, non erit ullum
exemplum in nostro tam detestabile sexu.
Media non lambit Cluviam nec Flora Catullam:
Hippo subit iuvenes et morbo pallet utroque.
Começa a reviravolta do discurso de Larônia. Se a moral está restituída, se a lei Júlia está novamente em vigor e é invocada contra a própria Imperatriz, é urgente que o denunciante também aponte o vendedor do perfume que o falso moralista está usando. Este deverá ser processado segundo a Lei Escantínia. Essa lei, cujos contornos não são claros, foi também reinstituída por Domiciano e tinha por propósito coibir relações entre homens. Colocada em paralelo com a Lei Júlia, parece ser o complemento homoafetivo do que a última é nas relações heteroafetivas.
O perfume, nesse caso, seria como que o sinalizador, por baixo da falsa virilidade do peito cabeludo, de que o indivíduo está disponível para encontros homoafetivos. Já apontamos antes, ao cidadão romano é vedado ocupar o lugar passivo de um relação homoafetiva, mas não o ativo. O vendedor dos perfumes deveria, portanto, ser punido como coadjuvante em tantos crimes.
Nesse ponto, Larônia constrói um argumento fantástico, cuja modernidade o feminismo está aí para testemunhar. Os homens devem ser alvo da investigação, pois cometem muito mais crimes que as mulheres, mas se protegem no meio de um grande número (como apontar um homem criminoso entre tantos que são?) e quase de forma militar, reunidos como uma falange atrás do mesmo escudo de hipocrisia.
Além disso, se apoiam na mútua conivência, um encobrindo o vício do outro de uma forma que não se vê entre as mulheres. Isso se demonstra no confronto entre diversas mulheres, cujos nomes, provavelmente convencionais, remetem a cortesãs, prostitutas ou outras mulheres de hábitos reprováveis, e um único homem criminoso. Aquelas não comentem o crime mais reprovável da sexualidade romana (sexo oral, especialmente com pessoas do mesmo sexo). Já o homem...
Aqui importa falar da integridade dos manuscritos, que não se decidem pela grafia dos nomes. Entre as mulheres, concorrem as variantes Tedia e Media. Acolhi a última por achar que o termo português ' tédio' contaminaria o sentido, ao passo que Media poderia aludir aos medos, povo do oriente, e a exóticos costumes.
O mesmo ocorre com o nome masculino. Alguns manuscritos têm Hispo, nome que poderia ser ligado a um obscuro senador da época, outros têm Hippo, termo que remete ao grego para 'cavalo'. Preferimos essa última pela polissemia que ela cria: em latim, o ato dessa personagem é subit iuuenes (fica por baixo dos meninos), indicando sua posição submissa, que não hesitei em traduzir por 'cavalgam' vocabulário comum do hipismo e da sexualidade. Hipo, portanto, é um nome ético: você já sabe o que a personagem faz sem que a descrição seja necessária. Por fim, não há como negar o ato ilícito, mesmo que não seja testemunhado, pois ele fica, como se diz hoje em dia, na cara: os romanos acreditavam que a conduta sexual viciosa causava palidez. Hipo empalidece duas vezes: isso quer dizer que se submete ao coito passivo e pratica a felação.
Por fim, é relevante apontar os versos 49-50 como um dos exemplos da invisibilidade que o lesbianismo possui no mundo romano. Por um lado, isso acontece porque em Roma é quase automática a associação entre ato sexual e penetração. Há um famoso epigrama de Marcial a respeito. Mas ao mesmo tempo, passagens como essa mostram a recusa em admitir que mulheres pudessem obter satisfação sexual entre si.
Olá, Fábio...
ResponderExcluirConheci o seu blog esses dias e estou genuinamente fascinado pela leitura do mesmo. Estás fazendo um excelente trabalho, e se o resto do meu comentário vai parecer um tanto duro, é exatamente porque tens feito um trabalho tão bom que quando há uma deficiência grave de julgamento ou de fato, como percebi nessa postagem, ela incomoda especificamente porque o restante do trabalho é muito bom em contraste. Fiquei pensando se deveria guardar os resmungos para mim, mas como deste carta branca e estímulo para “meter o pau”, eu acho que eu tenho o dever fazer, inclusive pelo respeito que tenho pelo excelente trabalho que estás desenvolvendo.
Minha queixa com essa passagem (e tua interpretação dela) é primariamente textual, seja pela tua política textual (que, sendo gentil, acho no mínimo perversa) como pela tua apresentação dos fatos. A passagem tem um grande problema textual, que passas completamente em silêncio, um problema textual menor aberto ao debate (mas que, creio, devas revisar ao menos o argumento) e um problema inexistente, ao menos do modo como puseste.
Questões textuais latinas não são simples, e embora o (péssimo) estado da transmissão do texto de Juvenal é relativamente simples, uma compreensão clara dela é necessária antes mesmo de qualquer discussão, e não apenas apresentas alguns fatos incorretamente como um aspecto da tua política editorial é objetivamente problemática: “editas” o texto latino não baseado no que é provável, razoável ou verdadeiro, mas no que é conveniente ou o que preferes pessoalmente ("acolhi a última por achar que o termo português" e "preferimos essa última pela polissemia que ela cria" são sintomáticos).
Saindo da política para os fatos, dizes que as variantes “Tedia” e “Media” concorrem nos manuscritos, e isso é enganoso ou blatantemente incorreto, já que pressupõe que há mais de um manuscrito com cada uma dessas variantes. Isso não é verdade. Há uns 500 manuscritos de Juvenal, e TODOS, exceto um (Pithoeanus, ou P), leem Tedia. Se consultares o aparato do Clausen, vais ver a informação de que a lição aparece em 3 manuscritos (P, S e O), mas uma delas é um erro (Nisbet aponta que a lição de O é uma correção) e a outra é mal compreendida: S e P são de fato o mesmo manuscrito, e a lemmata só tem valor como fonte independente quando discorda de P, já que o copista frequentemente copia diretamente do texto de P. De fato, há grande evidência de que a Lemmata originalmente lia outro nome, já que os “scholia vestustiora” dizem que “Media &tc” é “nomina meretricum lambentium”: isso é verdade para Cluvia e Flora, e a interpretação é basicamente a mesma da tua (“cujos nomes, provavelmente convencionais, remetem a cortesãs, prostitutas ou outras mulheres de hábitos reprováveis”), isso é verdade para Tedia (ILS 7918) mas não para “Media” que, aliás, nem é atestado como nome feminino (Ann. Epig. 1959 tem Medi[us] no genitivo). Considerando a simplicidade da tradição de Juvenal, em que quando todos os manuscritos da família de P (incluindo presumivelmente a lemmata) e da família Ψ concordam com um termo e P sozinho erra, num tipo de corrupção óbvia, o testemunho de todos os manuscritos (incluindo os irmãos de P) deve ser preferido, exceto se a opção não for unânime em ambas as famílias (como em I 21, em que dois manuscritos de Ψ leem “ac” junto de P, e V e o resto de Ψ discordam...). Também há duas regras da crítica textual, particularmente referindo-se às práticas dos escribas e de qual lição melhor explica a existência da outra, e isso sequer é um “exercício acadêmico”, pois o mesmo manuscrito comete exatamente o mesmo erro (P têm “Media” em I. 22, ao invés de “Meuia”; essa lição nem aparece mais nos aparatos) então não é nem o quão provável é do erro acontecer, mas ele de fato aconteceu. É válido tentar argumentar que “Meuia” (atestado como nome de prostituta) é uma possibilidade, mesmo sem evidência manuscrita, mas a evidência que temos para “Media” é certamente um equívoco, de um único manuscrito, que leu o mesmo nome errado outra vez.
O caso do “Hippo” é ligeiramente mais interessante, e podem haver argumentos válidos a favor dele. De fato, o nome é grafado de vários jeitos em vários manuscritos, e é provavelmente o manuscrito de Vienna (Vindobonensis 107, doravante V) que tem a lição “legítima” mas obviamente incorreta: Hisspo. “ispo” de P, “Hispo” da maioria, “Hippo” da lemmata (que, agora, tem autoridade por discordar de P) e até mesmo o bizarro “isso” (de um dos recentiores) parecem todos derivar do nome obviamente incorreto que aparece no manuscrito de Vienna, então as variantes tem de ser avaliadas pela lógica. Aqui, novamente, eu tenho problemas em relação à política da conveniência, mas se me for permitido eu quero apontar dois problemas que eu vejo com “Hippo”, e se puderes achar uma resposta para eles eu me considero convencido.
ResponderExcluir1) Hispo é um cognomen romano muito comum e amplamente atestado, enquanto Hippo sequer é um nome próprio. Que poetas podem usar palavras e nomes falsos em suas obras, particularmente satíricas, é amplamente atestado, e eu mesmo posso citar de cabeça Mentula (Catulo 115) e Caballina (Anth. Lat. 130, Riese) que não são nomes, e são usados com grande efeito como nome próprio por seus respectivos poeta. Contudo, ainda falta aqui a explicação, já que em todo o corpus de Juvenal os nomes são sempre nomes comuns, e porque em específico aqui (e somente aqui) ele emprega um nome que não é válido, logo depois de nomes tradicionais (“de guerra”) de prostitutas, como “Tedia”, “Cluvia”, “Flora” (“Catulla” não é atestado como tal, mas é um nome existente de mulher, e aqui provavelmente a figura do “Catulo” pesou na escolha). Porque aqui, e, mais importante, porque só aqui.
2) Dizes que “Hippo” cria uma polissemia por conta do “cavalo” grego, mas “Hispo” também é polissêmico e posso argumentar que faz bem mais sentido no contexto (e isso afeta a tua tradução, que eu admiro pela coragem e composição, mas ainda não aceito o nome próprio). O nome “Hispo” tem a mesma etimologia de “hispidus” (“hispida” é usada como nome eufemístico para pênis, cf. ThLL), e é facilmente lembrado quando vemos no mesmo texto outro cognato (“hirsutus”, alguns versos acima... podes lembrar do terceiro cognato, “horror”, implícito no nome). Considerando que aqui a principal perversão sexual é a prática do sexo oral, Hispo “fica abaixo” (se curva perante... para dar a “chupada” o praticante precisa se posicionar com a cabeça nas partes inferiores do “jovem”) e o nome dele não só referencia à pseudo-masculinidade do mesmo como sarcasticamente nos deixa a ideia de ele estar com o “peludo” (o pênis, ou os pelos na boca). Para mim esse nome é muito mais polissêmico e apropriado que o “Hippo”, que seria aquele que é cavalgado, ou objeto passivo do sexo anal, que não é o ponto de maior “perversão” que o falante critica.
Por fim, há um problema textual real que não mencionaste e, para mim, me parece mais relevante. “nam plura” não é a lição de P (que tinha somente “plura”), mas do corretor de P e do corretor de O, que obviamente estavam resolvendo o metro defectivo. Um dos nossos manuscritos capitais da linhagem de P tem “qui plura” (Parisinus 8072), V e a tradição Ψ tem “hi plura”; o texto do arquétipo certamente era defectivo aqui, e esses acréscimos métricos justificáveis. Vários editores têm (Courtney, Hendry, Braund), com boas razões, preferido “faciunt peiora” (Herwerden), mas ela por alguma razão não me soa muito convincente. Contudo, mesmo se “peiora” foi improvável, a antiga paradose “nam plura” é quase certamente falsa. Além do mais, Dracôncio, imitador assíduo de Juvenal, tem “faciunt peiora nocentes” (De L. Deo II. 331), como aponta Courtney.
*V tem "Hisppo", não "Hisspo" um erro de digitação tolo...
ResponderExcluirCorrigindo mais um erro tolo da minha parte: Clausen diz que "Media" aparece em P S e R (Parisinus 8072), não O. Coutney (comentário) diz que P S e R contém "Hippo", e ambos os críticos, que não consultaram o manuscrito, estão equivocados. Aqui não precisas acreditar na minha palavra, já que podes checar pessoalmente no manuscrito que R têm "Tedia" e "Hispo" tão claros quanto é possível ser num manuscrito do décimo século. O manuscrito está aqui para a consulta: https://archivesetmanuscrits.bnf.fr/ark:/12148/cc67333k
ResponderExcluirE aqui a página em questão se não quiseres olhar ele inteiro: https://imgur.com/a/BN1EsAw
A despeito do erro de referência, a questão ainda é a mesma: S não é testemunho independente quando concorda com P (só devendo ser mencionado quando discorda), deixando P sozinho com esse equívoco contra a atestação unânime de ambas as partes da tradição, e um equívoco que P não só é propenso a cometer como ele efetivamente cometeu mais de uma vez. Ainda assim, perdoe-me pelo mesmo...