Versos 29-33
Tal era o adúltero manchado há pouco em bodas
Trágicas, revogando então as leis severas
Que todos temem, mesmo até Vênus e Marte,
Quando a fecunda vulva de Júlia absolvia
Com abortivos, pra expelir fetos do tio.
qualis erat nuper tragico pollutus adulter
concubitu, qui tunc leges revocabat amaras
omnibus atque ipsis Veneri Martique timendas,
cum tot abortivis fecundam Iulia vulvam
solveret et patruo similes effunderet offas.
Aqui temos um trecho importante da argumentação. Em primeiro lugar por se tratar de um símile. Ao introduzir uma figura de linguagem dessa proporção, Juvenal obriga o leitor a admitir que o discurso satírico é bem elaborado, visto que ainda há quem suponha que, gênero arvorado na indignação, a sátira seja espontânea, não-trabalhada, genuína. O símile, lembramos, é uma figura retórica que dá brilho especial ao discurso e é particularmente explorada pela poesia épica, já que obriga o leitor a focar determinado aspecto da narrativa, enfatiza atributos específicos, conduz a junção de dois repertórios conceituais autônomos.
Dito isso, é ainda mais importante notar que, pela primeira vez no poema, são introduzidos personagens verdadeiros contemporâneos. E veja como a informação é distribuída aos poucos, pra ir construindo a repulsa no ouvinte antes mesmo que ele chegue a reconhecer o escândalo de que se fala.
Após o termo de comparação (qualis), é introduzido o adúltero (lembramos que em latim o termo é genérico, abarcando, além daquilo que nós mesmos nomeamos adultério, toda a prática sexual ilícita, como a que será descrita na sequência). Descobrimos que o crime sexual acontece dentro do casamento, pois esse infringe leis respeitadas mesmo pelos deuses (e que leis serão essas, o leitor ainda não sabe). Ao mencionar Júlia, a situação vem às claras: Júlia era filha do imperador Tito. Quando este morreu, foi forçada a casar-se com o tio, o imperador Domiciano. O casamento entre pessoas com laços de sangue era interditado para os romanos - essa é a lei revogada peli imperador. Para evitar a monstruosidade que, se acreditava, nasceria de um casamento ímpio, Domiciano forçou a sobrinha-esposa a numerosos abortos, que abreviaram sua vida. O processo é descrito de forma viva e aberrante, para causar o efeito repulsivo.
Chamo a atenção, nesses dois últimos versos, às aliterações de ff e vv, que me esforcei por manter na tradução.
A estratégia de Juvenal é interessante. O leitor vem até aqui pensando nas 'bichas socráticas' como o tema do poema. No entanto, a elas se equiparam indivíduos reais de índole cada vez pior, coroando a enumeração o próprio imperador. O que realmente importa no poema, o vício privado de certos hipócritas ou um confronto ao imperador?
Belíssimo trabalho, tanto na tradução, como na contextualização.
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