Versos 23-28
O pé reto achincalhe o torto; o branco, o negro:
Quem aceita que um Graco critique os tumultos?
Quem não mistura o céu e a terra ou mar e céu
Se homicidas Milão despreza, ladrões Verres,
Clódio acusa adultérios, Catilina a Cétego,
Se três alunos fazem a lista de Sila?
loripedem rectus derideat, Aethiopem albus;
quis tulerit Gracchos de seditione querentes?
quis caelum terris non misceat et mare caelo,
si fur displiceat Verri, homicida Miloni,
Clodius accuset moechos, Catilina Cethegum,
in tabulam Syllae si dicant discipuli tres?
Como foi apontado na última postagem, a passagem que apresentamos agora arrola uma série de exemplos que versam pela mesma lei cristã que desaconselha aos pecadores atirar pedras nos outros. Ultrapassa um pouco o escopo desse projeto, mas vale a pena mencionar que Juvenal, tanto quanto Pérsio, eram avidamente lidos pelos apologistas cristãos da tardo-antiguidade.
O primeiro verso causa muito incômodo aos nossos valores modernos, mas nem por isso deve deixar de ser discutido em suas implicações mais extremas. Primeiro recomenda que só ria dos pés tortos quem tiver um pé reto (ou mais propriamente impede que o roto fale do esfarrapado), o que por si só basta como exemplo, mas também testemunha que o riso satírico também é lícito contra a deformidade física, não só a ética. Para nós impensável, essa prescrição é indício da calocagatia, isto é, a associação entre o belo (gr. kálos) e o bom (gr. agathós), noção, associada à aristocracia ateniense do século V a. C. e amplamente difundida na antiguidade, de que uma virtude é indício da outra.
Ao retomar esse conceito, deve-se destacar como o juízo da sátira sustenta o conjunto de valores da classe dominante. Pois é nesses valores de classe que o lugar do homossexual passivo é vedado. Toda a poesia homoerótica latina frisa a condição estrangeira ou juvenil do amante passivo, embora a existência de discursos moralizantes como os de Juvenal e de Marcial indiquem que a realidade pode ser diferente do discurso. Não por acaso, Varilo tinha nomeado o filósofo lascivo de Sexto, típico nome de cidadão romano.
A próxima prescrição é ainda mais chocante, ao sugerir que o branco risse do negro. Literalmente, o poeta diz que o branco ria do etíope. Nossa escolha nessa passagem pela cor, em lugar do topônimo, tem duas motivações: primeiro porque os romanos em geral usavam o termo etíope como sinônimo de negro, mas principalmente para evidenciar a questão do racismo (pra ninguém ficar achando que ao falar de etíopes os romanos pudessem valorar, sei lá, os sudaneses de outra forma).
A contemporaneidade tem se esmerado em discutir a questão do negro na antiguidade, e muita página boa tem sido escrita a respeito, mas no afã de retirar da direita conservadora o direito de apontar gregos e romanos como ancestrais de um ocidente do qual não desejamos fazer parte, alguns equívocos têm sido cometidos. O principal é afirmar que os romanos não fossem racistas. A afirmação é bem-intencionada, e se baseia principalmente no fato de que os romanos, em especial no período imperial, eram muito dispostos a assimilar os estrangeiros, os provinciais, os dominados, de uma forma que encontra poucos paralelos na história da humanidade. A cidadania universal inventada pelos romanos, bem como a ascensão de imperadores das províncias, testemunham. Dito isso, os romanos são racistas, ainda que não com o contorno do racismo das Américas, mas em termos de uma xenofobia mais geral, em que o desprezo pelo etíope não era diferente daquele sentido pelos louros celtas e germânicos. O que não anula o racismo dos romanos (e o verso em questão não permite saída contemporizadora), ainda que sirva para desmontar o mito dos greco-romanos loiros como o Aquiles de Brad Pitt.
O verso 24 corrobora a visão elitista do discurso satírico. Os Gracos, lembramos, foram os proponentes da reforma agrária. Lá como aqui a proposta beneficia a economia em geral mas irrita a elite que concentra poderes; o resultado da proposta, em Roma, foi insurreição civil. Mas desautorizar os Gracos em seu desacordo com os tumultos é tratar de ilegítima a proposta que faziam.
No verso 25, um novo termo de comparação se lança, bem ao estilo de Juvenal, em que o vício tem um efeito em quem o testemunha. Assim, por exemplo, no início da sátira 1, é difícil conter a sátira quando se vê determinadas barbaridades; no início da sátira 2, é melhor fugir para os bárbaros longínquos a ver os falsos filósofos.
Nesse caso, o termo é especial: ao misturar céu, mar e terra, Juvenal está emulando Ovídio, nos versos iniciais das Metamorfoses, especialmente I.22 (nam caelo terras et terris abscidit undas). Lá, separar os elementos é a primeira forma de ordenar o caos; aqui, os vícios recolocam o mundo no estado de caos.
É uma imagem sofisticada, à altura dos vícios que serão apontados na sequência. Em comum, além de sua gravidade, está serem todos relacionados ao grande orador e estadista Cícero.
Verres, por exemplo, foi o governador-ladrão da Sicília enfrentando por Cícero em 70 a. C.; Milão, um membro da facção de Cícero, condenado por assassinar Clódio; este, político da facção contrária, famoso pela profusão de aventuras sexuais, que teriam envolvido inclusive sua irmã; Catilina foi o conspirador que planejou matar Cícero durante seu consulado, como parte de um golpe de estado, e Cétego era um de seus principais associados; finalmente, os discipuli tres são os integrantes do segundo triunvirato, Otaviano, Marco Antonio e Lépido, que aprenderam com Sila a terrível lista de proscrições, rol de pessoas não-gratas aos governantes que poderiam ser assassinadas sem que houvesse condenação. A pedido de Marco Antônio, Cícero foi um dos primeiros proscritos.
Além dos óbvios desvios de caráter dos indivíduos em questão, o fato de que Cícero os tenha acusado em seus discursos (com a exceção de Milão, que foi defendido) mostra como sua obra poderia estar sendo lida como modelo de discurso invectivo aproveitável pelo gênero satírico.
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