Versos 14-17
Rara a palavra e grande o tesão de calar,
Mais curto é seu cabelo que os cílios. Assim,
Mais vero e honesto é Peribômio, a quem eu livro
Do dito, pois confessa no rosto a doença.
rarus sermo illis et magna libido tacendi
atque supercilio breuior coma. uerius ergo 15
et magis ingenue Peribomius; hunc ego fatis
inputo, qui uultu morbum incessuque fatetur.
Aqui, pode-se pensar em uma discreta definição dos falsos filósofos como estoicos. A interpretação é um atalho, já sugerido pelos nomes de Cleantes e Crisipo como patronos das bibliotecas, mas também por comportamentos aparentemente associados a essa corrente filosófica. Ter os cabelos curtos parece ser um traço distintivo desse grupo, como sugere Pérsio na sátira 3, e o policiamento do discurso é abordado pelo mesmo poeta na sátira 5. O estoicismo seria um alvo fácil, dado que era ao mesmo tempo uma escola popular e objeto de perseguição do imperador Domiciano, o que poderia representar um estímulo ao preconceito contra eles e também daria a razão de Juvenal não se alinhar de forma evidente a nenhuma corrente filosófica.
No verso 14, optei por traduzir libido por tesão, pois embora o termo latino signifique vontade em sentido bem geral, temi uma associação desnecessária do termo técnico da psicanálise ao tecido da sátira, ao mesmo tempo que quis evidenciar uma crueza sexual no comportamento filosófico-sexual dos hipócritas em questão.
Estoicos ou não, sua conduta os rebaixa a um nível ainda pior que o de um certo Peribômio. Trata-se de personagem desconhecida, não citada em nenhuma outra parte, ainda que o contexto deixe claro que é pessoa de conduta sexual reprovável, mas em quem a condição não é disfarçada.
Os escólios antigos a Juvenal, que são datados (não sem controvérsias) dos séculos 4o ou 5o, definem Peribômio como archigallus, isto é, o sacerdote líder dos galos, os famosos cultores de Cibele em Roma.
Essa afirmação, ainda que contestável, acrescenta um sabor interessante ao texto. Embora muito tradicional em Roma, o culto da deusa Cibele (ou Magna Mater), importado da Frígia, nunca cessou de causar impressão entre os romanos, pois era pré-requisito para ingressar em seu sacerdócio que o candidato se castrasse, emulando Atis, o fundador do culto. Os galos, portanto, exóticos em sua indumentária estrangeira, eram necessariamente passivos quando se engajavam em atividade sexual. Diversos epigramas de Marcial sugerem que formavam um grupo bastante lascivo. Ainda de Marcial é um conhecido epigrama, I, 24, que versa sobre a mesma hipocrisia filosófica, com várias tangências com a sátira em discussão. A tradução é minha mesmo (2014).
Vês aquele, Deciano, de juba desfeita,
cuja fronte pesada até tu temes,
que fala em Cúrios e Camilos salvadores?
Não te enganes: casou-se ontem de véu.
Aspicis incomptis illum, Deciane, capillis,
cuius et ipse times triste supercilium,
qui loquitur Curios adsertoresque Camillos?
Nolito fronti credere: nupsit heri.
Juvenal critica um careca, Marcial, um cabeludo: juntos, contudo, indicam a relevância do tema para os autores do período.
Uma questão adicional que é muito importante apresentar. Peribômio (tanto quanto Varilo, que surgirá na sequência) é um nome forjado. Junta o grego perì (perto de) e bomòs (altar). Não há outro regidoAo adotar um nome falso para um personagem, o poeta está seguindo um de dois caminhos: ou encobre o nome real da pessoa invectivada (o que pode ser necessário por respeito ou medo) ou está construindo sua sátira com personagens convencionais, tipificados, ficcionais. Nesse caso, soa improvável que o poeta queria encobrir alguém que nem lhe causa respeito bem temor, o que nos deixa com a interessante inferência de que ele esteja construindo um personagem-tipo para sustentar a sátira. A questão é aberta, e toca na complicada crítica intencionalista, mas deve ser posta. Em um excelente texto sobre Virgílio, João Batista Toledo Prado nos mostra como, ao usar determinada figura de ocultação (no caso, a alegoria), alcançava o efeito contrário, evidenciando a proximidade não-óbvia entre duas personagens. Não se exclui que Juvenal invente um sacerdote efeminado que não substitui nenhuma figura real, mas que força o leitor a procurá-lo nos sacerdotes reais.
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