Sobre esse projeto

Há uns quinze anos, um escritor brasileiro contemporâneo (que, ironicamente, não me lembro qual foi - agradeço se alguém lembrar) desenvolveu um projeto muito interessante: escreveu um romance inteiramente online, aberto, num blog. A ideia era muito bacana: propiciar aos seus leitores que acompanhassem o processo criativo, as alterações, o desenvolvimento, e ainda opinassem - e potencialmente interferissem no andamento da narrativa. A única regra que me desagradou era que, ao final do processo, a página seria apagada da internet para que não interferisse na publicação do livro físico.

Bem se vê que não acompanhei a redação do tal livro (nem sei se chegou efetivamente a virar livro), ou me lembraria de seu autor, mas me fascinei pela desenvoltura e pela coragem de expor o processo espontaneamente, o sujeitar-se aos gostos do público com o alimento ainda não cozido, e até pelo que eu achava um risco que ele corria de perder o livro, do ponto de vista comercial, pois o seu público principal já o teria lido (e aí se vê como eu era um jovem inocente e esquecido do sucesso folhetinesco de nossa literatura do século xix).

Tantos anos passados, tendo já parido alguns livros e ganhado a vida esmiuçando, a sós ou com os alunos, a mecânica de muitos outros, percebo que um experimento dessa natureza, muito mais do que coragem, é um ato de gentileza. Gentileza com o público, que pode acessar uma camada de sentidos do texto por vezes esclarecedora. Gentileza com o pesquisador, que pode refletir sobre o processo criativo, sua (in)consciência, e isso concomitantemente, oportunidade rara na literatura.

Nesses meses de pandemia reencontrei um papel velho com algumas linhas traduzidas da segunda sátira de Juvenal. Era um trecho que, de última hora, decidira usar num minicurso sobre sátira oferecido em junho de 2019 para o curso de Letras da UFV. Longe da internet e sem disposição para apresentar a horrível tradução do Martins Bastos, investi meia hora na versão poética do começo dessa sátira.

Um ano depois, cheio de grandes incumbências e, portanto, sem condições de montar um projeto tradutorio com Juvenal que assimilasse essas linhas, me vejo, contudo, procurando formas de oferecer aos alunos uma interação com o gênero satírico, sua análise e modos de tradução, temas que seriam abordados em uma das disciplinas que ministraria nesse primeiro semestre ainda suspenso de 2020.

Lembrando-me daquele projeto, decidi retomar a tradução da sátira 2 de Juvenal de maneira similar. Sediando a tradução num blog, postando pequenos trechos da tradução à medida que os for fazendo, comentando, quando quiser, escolhas da tradução, dificuldades do texto, mas, acima de tudo, experimentando a possibilidade de um laboratório totalmente aberto, em que o público pode ver o texto no estágio que estiver, opinar, discutir. Veremos se essa abertura gera interferências.

Dois são os objetivos. Primeiro, um íntimo, colocar uma atividade diferente no leque de possibilidades restritas dessa quarentena, tão danosa à nossa capacidade de concentração. Em seguida, oferecer aos meus alunos um sneak peek dos debates que ocorreriam (ainda vão ocorrer) em sala, sem o peso da lista de presença, do horário de aula, do compromisso com avaliações. Alunos e ex-alunos são o público imediato, mas qualquer um é convidado a participar.

Confesso que não sei o ritmo que poderei imprimir a esse projeto no atual cenário, se chegarei a traduzir o poema integralmente (são 170 versos e, de mais a mais, o trecho mais citado do poema está bem no começo mesmo) e mesmo se a publicação concomitante terá interferência significativa em como o texto é traduzido por mim ou lido pelo público.

Mas estou disposto a descobrir, e convido quem quiser a participar da viagem. Por ora, a única regra estabelecida é que apagarei qualquer comentário que não tenha a ver com o projeto, e com isso me refiro especificamente a propagandas, discurso de ódio, robôs e outros tipos de lixo da contemporaneidade. O que quer dizer, a princípio, que se for pra meter o pau em mim ou na tradução, estou, como faz o Horácio da sátira II.7, estimulando que aconteça. A principio.
Fábio Cairolli


2 de junho de 2020.

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